segunda-feira, 28 de junho de 2021

148.

Ela me contou que era ciúme. A distância, o olhar de escárnio que quase se mostra admiração. Era ciúme por causa de como ele falava de mim, escrevia sobre mim. Eu senti profundamente no meu peito um pesar baixinho, por nós duas, e disse que ele escreveu sobre mim, mas nunca me conheceu.
Me transformou em musa - eu chamo de fantasma - porque tinha medo da mulher. Quem eu fui ali só existiu dentro dele, a mulher que eu sou ele nunca viu, nem dormindo.
Tinha medo do que ia sentir, do que ia fazer, do que eu não ia acatar.
Não digo que não tenha sofrido, sofreu tanto que quase virou poeta. Quando foi poeta, sentiu tão profundamente a si mesmo que só pôde sentir isso. O restante de nós, espelhos com formatos diferentes, seu sofrimento autorizava.
Depois se ensimesmou ainda mais, ficou só, te conheceu.
Ele escreveu sobre mim, mas talvez tenha te amado.

terça-feira, 22 de junho de 2021

147.

Curiosa demais pra ignorar, orgulhosa demais pra implorar que você me deixe entender. Repetindo que é sobre mim, minha curiosidade, eu, comigo.
Eu que não sou de imaginar, de me dedicar ao que não seja real, questiono do que é feita a realidade, quem definiu, se serve pra qualquer coisa. Eu que nunca fui de sonhar, voltei depois da sua primeira invasão. Intruso de sonhos e, até onde eu sei, não só dos meus. É sobre você. Um tipo de inspiração que me incomoda bem no ego, no meu espelho trincado, na via de mão única. É sobre mim.
Orgulhosa demais pra me deixar inspirar sem nenhum controle, sem nenhum poder. Curiosa demais pra fingir que vai passar.

terça-feira, 16 de março de 2021

146.

Aquele que anda com olhos nus e um coração em chamas descobre cedo que a única forma de querer-se vivo é recusar em si o pecado. Não o cometido, mas sua assunção.

Nunca permitir-se a noção de que sua vontade pura seja proibida, não deixar entrar o mal.

Ao invés disso, dançar com suas incoerências e aceitar o inexplicável como a mais profunda trama de si.

Convidar encantamentos viscerais em sua inocência, gozar o desespero de não ser, dançar com o diabo à meia-noite.

Viver pra saber morrer, morrer pra saber viver, adentrar os universos que aí cabem.

Aqueles que andam com corações nus e os olhos em chamas descobrem cedo como é doce, apesar de tudo.